Opinião: 'Conhecimento(s), Univer(Cidade(s)) e (Des)Envolvimento(s)'
Caiu em moda falar-se de conhecimento, produção de conhecimento, transferência de conhecimento. Palavras pouco refletidas mesmo por quem tem obrigação de o fazer, os intelectuais.
Convém, desde já, frisar que não há conhecimento, há conhecimentos. Conhecimentos mais locais, mais regionais, mais globais; conhecimentos mais empíricos, mais técnicos, conhecimentos mais abstratos, mas sempre teórico-práticos, pois os mesmos não se dividem, como também não se divide uma moeda cuja cara e coroa estão sempre geminadas.
O dualismo que acompanha esses discursos de políticos e também de muitos académicos, tem emergido e persistido, pelo menos desde Descartes, que viveu entre 1596 e 1650. Foi com ele que aprendemos o que era a ciência, o método científico [tudo no singular], a objetividade. Hoje não seria bem assim. Foi esse Discurso do Método que marcou a ciência do século XX e também a deste primeiro quartel do século XXI. Aprendemos a pensar com a cabeça e não com o coração; desumanizámos, desantropomorfizámos a ciência e tal teve também efeitos diretos na educação, sempre com exceções, claro, pois aqui e ali sempre foram surgindo os dissidentes que propuseram pedagogias ativas versus o magister dixit. Ensinou-se a ler, escrever e contar - educação essencialmente racionalista, cognitivista. Não era importante a educação dos sentidos, o pensar as emoções, o afeto entre docente e discente; a relação. O importante era o produto, o aluno/estudante instruído, não o processo de levar a aprender, de educar, verdadeiramente.
Arrumámos o mundo duma forma muito dualista: razão/emoção; racional/irracional; instruído/analfabeto; prático/teórico, etc. E assim continuamos a pensar, ainda, tantas vezes, hoje. Apesar das investigações que demonstram a influência das emoções na memória, nas relações humanas, na inteligência, na aprendizagem, etc., continuamos “filhos de Descartes” porque continuamos a dividir o conhecimento a preto e branco: objetivo/subjetivo; teórico/pratico e politécnico/universitário, como tantas vezes desconstruí neste jornal.
Ora, temos, portanto, conhecimentos e não conhecimento. E conhecimentos que não são apenas produzidos pelos investigadores. E, muito menos, conhecimentos que possam ser transferidos, como se de um sistema de vasos comunicantes se tratasse ou de despejar uma cabeça cheia numa cabeça vazia, como escreveu Montaigne, no século XVI.
Os conhecimentos terão de ser dialogados, contextualizados, aplicados em contexto, adequados, mediados, e não apenas num sentido unidirecional, o da academia para a vida quotidiana. Ou, na linguagem da cultura hegemónica, da escola para a comunidade. Também no sentido inverso, numa autêntica comunicação bilateral. Diatópica. A escola/universidade/politécnico... tem também de aprender e não querer apenas ensinar. O trabalho de desenvolvimento tecnológico, industrial, intelectual, local, regional, global, tem de ser feito em rede. Com todos e para todos. Partilhemos [todos] conhecimentos, saberes, culturas. Nada de simples transferências. Nada de neocolonialismos. O valor próprio das palavras [mais um conhecimento] não pode ser maltratado pelas instituições que se dizem produtoras e reprodutoras de conhecimentos e saberes, independentemente do “cultural mindset” dos potenciais recetores.