A dignidade da Pessoa Humana e o Direito Fiscal
A dignidade da pessoa humana constitui um princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa e deve ser refletida em todas as esferas da atividade do Estado, incluindo o domínio fiscal. Assim, a atuação da Administração Tributária (AT) tem de ser pautada pelo respeito aos direitos dos contribuintes, garantindo que estes não sejam sujeitos a práticas abusivas ou decisões arbitrárias. Infelizmente, a relação entre os contribuintes e a AT tem, por vezes, sido marcada por desconfiança, especialmente quando as decisões da administração se afastam da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores ou quando as normas fiscais são interpretadas de forma excessivamente restritiva e desfavorável aos cidadãos. O princípio da legalidade tributária, também de natureza constitucional, impede que a AT atue como legislador indireto, ou seja, não pode criar ou modificar normas fiscais sem que estas estejam expressamente previstas na lei. Contudo, tem-se verificado a emissão de informações vinculativas e orientações internas que, por vezes, se desviam dos princípios de hermenêutica jurídica e das decisões judiciais, comprometendo a previsibilidade e a segurança jurídica dos contribuintes. É neste contexto que se realça o papel dos tribunais, que têm de exercer o seu controlo sobre a legalidade dos atos praticados pela AT, garantindo assim que as interpretações fiscais se mantenham em conformidade com o ordenamento jurídico.
A revisão da Lei Geral Tributária (LGT), especialmente com as alterações introduzidas pelo artigo 68.º-A, n.º 4, pela Lei n.º 7/2021, impõe à AT o dever de rever as suas orientações genéricas sempre que se verifiquem decisões reiteradas dos tribunais superiores. Esta medida visa assegurar uma maior coerência na aplicação das normas fiscais e reforçar a confiança dos contribuintes, que, no entanto, continuam a ver-se obrigados a recorrer aos tribunais para defender os seus direitos devido à resistência da AT em acatar a jurisprudência consolidada.
Os contribuintes dispõem de diversos mecanismos de defesa – desde reclamações graciosas e impugnações judiciais a recursos em tribunais arbitrais – para contestar atos que considerem ilegais ou injustos, nomeadamente quando se baseiam em orientações internas que contrariem a jurisprudência. Ainda assim, persistem desafios práticos, como a dificuldade de aceder presencialmente aos serviços sem marcação, a ineficiência na comunicação telefónica e a frequente incapacidade dos serviços de finanças para fornecer respostas seguras e objetivas. Soma-se a este quadro a desigualdade na aplicação da legislação e o “brutal” poder da máquina tributária, que, aliado à ausência de responsabilização pelos erros – mesmo os mais grosseiros – e à utilização do sistema informático da AT como “bode expiatório”, coloca os cidadãos, sobretudo os com menos recursos, em situação de vulnerabilidade. Diante deste cenário, é imperativo promover reformas que tornem a atuação da AT mais transparente, responsiva e rigorosamente alinhada com os preceitos da dignidade humana e da justiça fiscal. O legislador deveria ter introduzido consequências mais diretas para o incumprimento do dever de revisão das orientações, estabelecendo sanções que desincentivassem a litigância infundada e assegurando que os contribuintes não sejam onerados em processos de execução fiscal quando a jurisprudência lhes for favorável. Somente através de um esforço contínuo para reforçar a previsibilidade, a transparência e a justiça na aplicação das normas fiscais será possível restaurar a confiança dos cidadãos num sistema tributário que respeite os seus direitos fundamentais.